Os hieróglifos de Louis Cattiaux
George Kirkeby
Tradução do italiano: Fabio Malavoglia
Tira as sandálias dos teus pés porque o lugar sobre o qual estás é uma terra santa
(Êxodo, III, 5; Atos, 7, 33).
Em 1946 Louis Cattiaux publicou os doze primeiros livros, ou capítulos, de “A Mensagem Reencontrada”. Mais tarde, outros livros vieram à luz, até a edição definitiva, composta por 40 livros. Na publicação parcial de 1948 a inspiração de Cattiaux foi transcrita de modo bem condensado. O autor empenhou-se em tornar suas sentenças extremamente precisas e em dar ao conjunto da obra uma coerência perfeita. Ele também tinha previsto adicionar doze desenhos correspondentes a cada um dos doze primeiros livros.
Destes doze desenhos, o penúltimo é particularmente incomum. Estava destinado a ilustrar o Livro XI, intitulado “Rive Ténue – Terra Viva”. Nele entrevê-se um homem que traz uma espécie de chapéu composto por um grande número de linhas e de traços cruzados. No centro da imagem, dentro de uma forma de ovo, encontra-se uma estrela de cinco pontas. À direita e à esquerda da cabeça, aparecem o Sol e a Lua. Os pés esmagam uma serpente. A imagem vem acompanhada de diversas palavras e lemas.
Desenho de Louis Cattiaux realizado com a intenção de ilustrar o Livro XI de “A Mensagem Reencontrada” intitulado “Rive Ténue – Terra Viva”.
Tomado em seu conjunto o hieróglifo ilustra o mistério do homem ao qual Cattiaux faz permanente referência em sua obra. Ele afirma, por exemplo:
A menor flor representa o Universo. Mas só o homem o contém integralmente (Livro I, 21’).
Sem dúvida Cattiaux refere-se ao homem regenerado que os Antigos chamavam microcosmo, aquele no qual se encontra contido por inteiro o Universo, ou Cosmos. O desenho imaginado pelo autor para exprimir esta idéia é realmente engenhoso, já que contém diversos símbolos alquímicos e cabalísticos, reunidos para o ensino de um único mistério, e eis porque o estudo das partes não deve nos fazer esquecer nem por um instante a mensagem do conjunto. Repetimos: este hieróglifo deve ser interpretado como uma unidade inteira, isto é como uma figura sagrada que manifesta aquilo que está oculto e que ensina o mistério da criação divina.
A estrela de cinco pontas, ou pentáculo, relembra aquela utilizada pelos antigos magos e cabalistas. O ovo que a encerra ocupa o centro do homem e se estende do pescoço até o sexo. Na Mensagem Reencontrada o ovo representa a união do céu e da terra:
O coração do céu e da terra é como um ovo oculto no mar do mundo (Livro III, 24’).
As linhas cruzadas que traçam o perfil do personagem estão dispostas como no caso de um vitral. É provável que Cattiaux tenha concebido a figura como um projeto de vitral. De fato, num pequeno cartão entre suas coisas, foi encontrada a mesma imagem, sem palavra nenhuma, e nesta versão os espaços entre as linhas não traçam apenas o corpo do homem, mas também compõem um fundo. As cores dos personagens que aí se encontram são o amarelo e o ocre, com alguns toques de vermelho, de azul e de verde; a parte superior que corresponde aos céus está colorida em tons de azul, e a parte inferior que representa a terra, nos tons castanhos e escuros. O conjunto relembra, já o dissemos, um vitral/mosaico, cujo sentido filosófico se reportaria, conforme o próprio Cattiaux, à palavra profética:
Examinadas por fora, as rosáceas das catedrais só deixam ver a sua ossada, mas vistas por dentro, seu esplendor ilumina o crente. Assim a palavra de vida ouvida por fora somente deixa avistar o osso da verdade, ao passo que essa mesma palavra ouvida por dentro faz saborear a medula nutritiva do criador de todas as coisas (Livro XXI, 17).
Os construtores das catedrais da Idade Média conceberam vitrais e rosáceas para ensinar que Deus é luz. Os cristais das rosáceas lhes permitiam fixar a luz esparsa e moldá-la por meio de ícones e ornamentos que testemunhavam de sua fé. Todavia, a arte da luz, assim como aquela da palavra profética, não é, sem a benção divina, mais que uma ossatura: é necessário o batismo para entrar no templo e contemplar desde o interior.
Na parte superior do desenho encontramos escrito LUX, “luz”, e na parte inferior, KEMIT, termo hermético que indica a “terra negra”. Na terra viva que é como a beira (em italiano, riva, N.d.T.) tênue produz-se a fusão da luz celeste com o negrume terrestre. É sem dúvida a razão pela qual Cattiaux representou este mistério como se se tratasse de um vitral que deixa aparecer toda a gama das cores, do negro ao branco.
Na Mensagem Reencontrada está escrito:
O arco-íris anuncia as bodas do céu com a terra (Livro II, 28’).
Os alquimistas sempre identificaram KEMIT, a terra deles, com o Egito. Cattiaux escreveu numa carta:
Tenho uma veneração particular pelo antigo Egito… e espero visitar um dia esta “terra amada pelos deuses” da qual brilhou a luz que faz os homens viverem, visto que o Egito é a terra negra, a kemit dos hermetismos («Florilégio Epistolar», in Le Fil d’Ariane, n° 17, p.8).
Cattiaux reevoca a lenda segundo a qual Kemia, o antigo nome do Egito, derivaria de Cam (ou Kem), o filho negro de Noé que lá teria se estabelecido após o dilúvio (cfr. Isidoro de Sevilha, Etimologie VII, 6, 17.). Tendo a alquimia nascido no Egito, acreditou-se que seu nome derivasse daquele do país, daí porque al-chemya seria uma derivação de kemia. Segundo a interpretação exotérica kemia, “terra negra”, deve seu nome ao lodo deixado pelo Nilo depois das cheias, que constituía precisamente a terra fértil que permitia colheitas abundantes. Mas do ponto de visto esotérico trata-se de bem outro lodo, do qual provém o tesouro buscado pelos alquimistas. Muitos o desprezam, devido à sua cor, como é lembrado na Mensagem Reencontrada:
Ela oferece a prata e o ouro, o diamante e o rubi, mas todos rejeitam a sua mão porque ela é negra (Livro IV, 8’).
No desenho de Cattiaux o nome desta terra negra está escrito aos pés do personagem para nos indicar que é de sua obscuridade que surgem as cores da criação, tal como as pedras preciosas são extraídas das profundezas da terra.
Acima da palavra KEMIT encontra-se uma serpente e a inscrição COAGULA. Louis Cattiaux escreveu, numa de suas cartas:
“… parece que a aventura de Adão deva ser a experimentação da sujeira exterior, mas também a aquisição do ‘fixo’…” («Florilégio Epistolar», in Le Fil d’Ariane, n° 34, p.81).
Isto poderia ser interpretado neste sentido: no mistério do exílio do homem esconde-se o segredo da coagulação da luz. Todavia certa espiritualidade tende a desprezar tudo que tem relação com a queda, pois, não se dando conta de nada mais que a sujeira exterior do homem, ela ignora que no imundo se encontra também o segredo de Deus. Cattiaux escreve a este propósito:
A queda do homem tem uma finalidade divinamente elevada, que é a aquisição de um corpo baixo e sua glorificação em Deus (Livro XXV, 49).
A arte da alquimia ensina que é necessário antes de tudo separar o puro do impuro por meio do solvente universal que não pode ser obtido a não ser com a ajuda de Deus:
É necessário dissolver antes de coagular. É a lei do céu e da terra (Livro XXXI, 39 e 39’).
É também o que afirma o célebre axioma alquímico: solve e coagula. No desenho estas duas operações encontram-se reunidas no lugar onde o misterioso personagem pisa na serpente:
A mulher que esmaga a testa da serpente é a dissolução, e a serpente que lhe morde o calcanhar é a coagulação («Florilégio Epistolar», in Le Fil d’Ariane, n° 34, p.81).
A palavra SOLVE aparece sobre um pássaro que desce do céu, sob a inscrição LUX. Segundo os textos alquímicos, o conhecimento experimental da luz divina permite separar o segredo de Deus da sujeira exterior.
Solve e coagula, o pássaro e a serpente, eis os caminhos que conduzem à união do céu e da terra.
A luz de vida não saiu da união do céu e da terra? E as duas vias de Deus não se encontram milagrosamente unidas nela só? Os profanos ignoram as duas, os meio-instruídos as separam e as opõem; somente os sábios as juntam e as unem na unidade de Deus (Livro XXXI, 41 e 41’).
O pássaro sobre o qual está escrita a palavra SOLVE tem a forma de um chapéu. Segundo o próprio Cattiaux, os personagens que, nas pinturas dele, trazem um chapéu, indicam sempre algo de oculto (conforme um comentário oral de Cattiaux, referido por Charles d’Hooghvorst). De fato, a dissolução que ocorre por intermédio de um dom de Deus é o maior dos mistérios da arte alquímica. Sem ela não há mais que a química vulgar dos gananciosos (pretender achar o segredo oculto na terra negra sem a ajuda divina, isto é, sem desfazer-se da sujeira exterior, é a loucura dos gananciosos. A este propósito cfr. Emmanuel d’Hooghvorst, Le fil de Penélope, t. 1,, ed. La Table d’Emeraude, Paris, 1996, p. 313: “…a ganância foi o que congelou aqui embaixo todas as riquezas do ouro… A concupiscência e as riquezas de Dite significaram a perda do ouro vivo: não é mais que um cadáver o que tolamente buscam os gananciosos…”).
As letras do termo AZOTH aparecem à esquerda e à direita do ovo central. AZOTH é uma palavra muito empregada pelos alquimistas, indica a matéria deles. Nicolas Valois escreve:
“… pois note que o fogo e o azoth te bastam, isto é, a matéria preparada como se deve e o fogo…” (Nicolas Valois, Les Cinq Livres, ed. La Table d’Emeraude, Paris, 1992, p. 201.)
E poucas linhas acima, Valois explica como se prepara a matéria deles:
“… mas nossa composição não é fleumática se tão sobrecarregada desta terra danada, que é a prisão de nossa pedra. E, portanto, tal terra maligna separada com artifício da outra terra pura será nosso citado composto, a matéria da pedra sem retardos e sem impedimentos, Mais claro que isso não te pode ser ensinado…” (Ibid. p. 200).
Para dizer que a matéria deles contém tudo, alguns alquimistas interpretaram AZOTH como o princípio e o fim de toda a Obra, sendo a letra “A” a primeira de todos os alfabetos, “Z” a última no alfabeto latino, “O” (ômega) a última no grego, e “TH “(tau) a última do hebraico (cfr. Exemplo Aurelia occulta philosophorum, in J. –J. Manget, Biblioteca Química Curiosa, t. II, ed. Chouet etc, Genève, 1702, p. 215). Zoth é também o primeiro nome que Adão deu a Eva, quando exclamou: “Esta aqui (zoth), desta vez, é osso dos meus ossos” (Genesis, II, 23). Se, em hebraico, consideramos zoth como um substantivo e fazemos com que seja precedido pelo artigo determinativo ha, obtemos hazoth ou azoth em redação defectiva (cfr. Emmanuel d’Hooghvorst, op. citada, t.I, p. 280, n. 3).
As palavras KEMIT, KHARIS e KHRIST formam um triangulo e lembram as três fases da Grand Oeuvre:
A terra negra adormecida. A viva luz do mundo. O Salvador vermelho muito perfeito. (Livro IV, 1’).
KEMIT remete, já o vimos, à “terra negra”, KHARIS associada à lua no desenho, remete à “viva luz do mundo”. Possivelmente Cattiaux tenha empregado este termo para transcrever a palavra grega χάρις, que São Jerônimo relacionou com gratia. Na verdade esta palavra significa “clarão (fulgor) brilhante” e, por extensão, “graça”. O clarão da lua representa a brancura imaculada, isto é, a matéria totalmente liberada de impurezas e pronta a parir. KHRIST, escrito sob a figura do Sol, é “o Salvador vermelho muito perfeito”, o fruto maduro, a complementação da Grand Oeuvre.
A lua e o sol estão ligados por traços diagonais ao ovo que é o elemento principal onde se reúnem todos os sentidos. Ele está envolto por dois lemas latinos, um dos quais diz: PER IGNEM ET AQUAM TOTUM FECIS, “mediante o fogo e a água ele fez tudo”, e o outro: NE VILIPENDA CINERES, “não despreze as cinzas”. Citemos aqui uma passagem de Nicolas Valois que parece ter inspirado a imagem de Cattiaux:
“… todas as coisas são compostas por três coisas, ou seja, de terra que faz o corpo, de água que faz o espírito, e de fogo que faz a alma. O ouro é assim composto, já que embora a terra seja puríssima, não é todavia mais que terra esplendorosa por causa da virtude da água e do fogo. Já que, como foi dito, sendo de tal ouro esse esplendor, esta terra será de pouco valor…” (N. Valois, op. citada, p. 249. A propósito de N. Valois, referimos a citação de Carlos del Tilo no prefácio de La puerta, Los cinco libros, n° 50, 1996, p. 8: “Parece que Louis Cattiaux teria obtido a transmissão da Chave dos segredos dos segredos do mestre desaparecido N. Valois”).
A criação alquímica se faz por meio do fogo e da água, mas necessita da terra pura para ser completa. Esta terra pura encontra-se nas cinzas. Ela aparece quando as cinzas são purificadas pela virtude da água e do fogo, como previsto nos procedimentos da natureza: para separar qualquer composto é precisoantes de mais nada consumi-lo com o fogo, depois lavá-lo com a água, para obter um sal que é oportuno não desprezar.
A terra (ou corpo), a água (ou espírito), e o fogo (ou alma), representados por KEMIT, KHARIS e KHRIST, estão reunidos ao redor do ovo. No interior, a estrela de cinco pontas evoca a quintessência. Queria Cattiaux indicar com isso a relação entre a quintessência e o ouro filosófico? Eis aquilo que N. Valois diz a respeito:
Pois bem a pedra não é propriamente [mais] que a quintessência puríssima de uma certa coisa, que é liberada e extraída da sua terra impura, que a retinha como engaiolada dentro dela; a qual quintessência não é outra coisa que uma virtude e substância invisível aos olhos do corpo, que não pode por si conter-se sem corpo, tal como a alma do homem. Eis porque essa quintessência tão nobre necessita de um corpo assaz sutil e que se aproxime da nobreza de sua substância sutil, a qual quintessência de tal maneira corporificada é uma medicina maravilhosa para todas as doenças, conforme o mais ou o menos. Mas o ouro tem tal quintessência mais perfeitamente em si que os outros corpos, tanto por causa de sua longa e perfeita digestão nas vísceras da terra, da qual seu corpo é formado; o qual corpo, embora os rústicos o aclamem como ouro, não é, todavia, mais que terra. Já que, como se disse, tal quintessência ou ouro dos filósofos é invisível aos olhos do corpo, e nunca é percebida outra coisa que terra no ouro, como no corpo do homem, no qual a alma não é manifesta a não ser mediante os seus efeitos e faculdades (ibid. pp. 248-249).
A propósito do número cinco, citemos ainda Cattiaux:
É o quinto que está antes do primeiro. É aquele que se move e o que move invisível e visivelmente. (Livro XXXI, 45’).
O conjunto dos símbolos alquímicos e cabalísticos que se sobrepõem no desenho deve conduzir-nos a descobrir a intenção profunda do autor. Encontramo-nos aqui verdadeiramente diante de um ensinamento a respeito da terra viva ou microcosmos, e em particular a respeito do ovo filosófico.
Pois bem, os alquimistas muito falaram a respeito deste ovo. No seu Tratado sobre a natureza do ovo dos filósofos o célebre Trevisan (Bernardus Trevisanus ou Bernardo de Treviso, 1406-1490, N.d.T.) escreveu:
Esta pedra é um ovo perfeito de duas substâncias de uma natureza, que se compõe de corpo e de espírito em unidade de essência e de natureza, e nesta conjunção de ressurreição o corpo é tornado espírito como o próprio espírito, e são tornados como um, como água mesclada com água não podendo nunca mais ser separada, não havendo nenhuma diversidade neles, ou seja de três que são espírito, alma e corpo, sem qualquer separação (Traité de la nature de l’œuf des philosophes, in Oeuvreschymiques di Bernard le Trévisan, ed. La Maisnie, p. 141).
Em “O Rosáriodos Filósofos” lemos:
Somente aquele que sabe fazer a pedra dos filósofos compreende as palavras deles a respeito da pedra. Já que os filósofos claramente se empenharam em abrir esta arte àqueles que dela são dignos e a escondê-la dos indignos. E é assim que eles disseram a verdade sobre a potência da intenção, mas não sobre a potência das palavras, e dissera, por exemplo, que a pedra filosofal se faz partindo do ovo porque há no ovo três coisas semelhantes àquelas que compõem a pedra (Le Rosaire des Philosophes, ed. Librairie de Médicis, Paris, 1973, p.104).
O texto nos adverte do poder das palavras. É, portanto, importante pesquisar a origem dos termos empregados pelos alquimistas. Nos primeiros manuscritos alquímicos gregos recolhidos por Maurice Berthelot, encontram-se vários comentários sobre o ovo filosófico cujo conteúdo geral difere pouco das explicações dos alquimistas posteriores. Num deles figura uma afirmação nos parece interessante relevar:
Nomenclatura do ovo: é o mistério da arte (Collection des anciens alchimistes grecs, ed. G. Steinheil, Paris, 1888, p. 21).
Em grego “ovo” se diz ώόν, mas num manuscrito encontramos também a variante όν. Segundo Berthelot, a confusão é talvez intencional (cfr. ibid., p. 87, n. 5), já que o termo όν significa “aquilo que é”, “real”, “autêntico”, ou então “ser”, “essência”.
A mó de conclusão, achamos que um versículo de A Mensagem Reencontrada resume bem a imagem hieroglífica que escolhemos:
Sou a essência, sou a substância, sou o nó, diz o Senhor do centro. “A amêndoa” (Livro XVIII, 5’).